Igor Fuser: a mídia contra Battisti

"Não me parece que o Brasil seja conhecido por seus juristas, mas sim por suas dançarinas. Portanto, antes de pretender nos dar lições de Direito, o ministro da Justiça faria bem se pensasse nisso não uma, mas mil vezes". Essa ofensa ao povo e ao Judiciário brasileiros, divulgada pela agência Ansa no dia 30 de janeiro, partiu da boca do deputado Ettore Pirovano, da Liga Norte, um partido de extrema-direita famoso pelas campanhas de ódio aos imigrantes e pela esdrúxula proposta de separar o norte (rico) da Itália do resto (menos rico) do país.

O discurso cafajeste de Pirovano, com seu eufemismo de mau-gosto para se referir a outro ofício que não o de dançarina, já revela muito sobre o universo mental da coligação governista da qual ele faz parte, em companhia dos neofascistas declarados que, sob a batuta de Silvio Berlusconi, sentem novamente o gosto do poder, mais de 60 anos depois que Mussolini teve o seu merecido fim. O assunto: a decisão de Tarso Genro de conceder ao ex-extremista italiano Cesare Battisti, residente no Brasil, a condição de refugiado político, o que inviabiliza o pedido de extradição feito pelo governo italiano.

Diante do alarido que a imprensa brasileira tem feito em torno do tema (manchete principal numa das edições do Estadão!), era previsível que aquela fala destemperada de um aliado de Berlusconi aparecesse com destaque na mídia brasileira, certo? Errado. A notícia passou batida pela imprensa empresarial, que permanece, em duas semanas de intensa cobertura do tema, fiel a um padrão bem conhecido. Tudo o que se presta a reforçar as posições dos donos das empresas jornalísticas é realçado, martelado até ganhar as feições de verdade auto-evidente. Já os conteúdos que podem alimentar argumentos contrários são minimizados, relativizados ou omitidos.

O mecanismo é bem conhecido dos estudiosos da comunicação. Noam Chomsky foi quem melhor elucidou a dialética de "ênfases" e "omissões" que garante às classes dominantes a difusão das idéias do seu interesse sob o manto insípido da objetividade. Mas a postura da mídia empresarial nesse episódio também pode ser explicada a partir das teorias do sociólogo Ervin Goffman, que desenvolveu nos anos 70 o conceito do "enquadramento". Trata-se, segundo Goffman, do dispositivo interpretativo mais geral que envolve os conteúdos específicos. Opera de uma forma sutil, como uma moldura invisível ao redor dos fatos. Uma vez estabelecido, garante que o juízo do receptor se incline, automaticamente, para o enfoque escolhido pelo emissor.

A maneira como essa moldura foi construída no caso Battisti daria uma tese de doutorado. A Folha de S.Paulo, por exemplo, se refere ao ex-militante como "terrorista", desprezando a existência pacata que ele mantém há 30 anos. O governo italiano, em contrapartida, aparece na mídia brasileira como uma entidade neutra, imune às paixões políticas. O nome de Berlusconi raramente é mencionado. As motivações do ministro Tarso Genro são pintadas como "ideológicas", como se as autoridades italianas ou os próprios jornais atuassem à margem das ideologias.

Nesse esquema, a imagem simpática da Itália se converte em capital simbólico para legitimar decisões tomadas pelo Judiciário daquele país no contexto da turbulência política da década de 70. Qualquer que seja a verdade sobre a participação de Battisti nos crimes a ele atribuídos, é incontestável que não se tratava de delinquência e sim de ações políticas, como reconheceu o ex-presidente Francesco Cossiga ao se referir a ele como "um subversivo". Isso, por si só, já justificaria a decisão de Genro.

A ultra-esquerda da época, com todos os erros, tampouco tinha como inimigo um estado de Direito "normal", mas um regime democrático degenerado, dirigido por um primeiro-ministro, Giulio Andreotti, com ligações mafiosas mais do que provadas. Leis assumidamente "de exceção" foram adotadas no combate à esquerda armada e o Estado italiano recorreu, sim, a violações aos direitos humanos, inclusive à tortura, como denunciou a Anistia Internacional.

Tudo isso é história, mas a imprensa, ainda assim, insiste em desprezar o contexto tenebroso em que se deu a condenação de Battisti. Na descrição do filósofo Norberto Bobbio, a Itália se achava submetida a um "criptogoverno", em que as autoridades "agem na sombra em articulação com os serviços secretos". Um cenário de "mistérios", de verdades encobertas, de "trevas" que "não foram dissipadas". A citação, que a mídia não teve a gentileza de compartilhar com os leitores, está no livro O Futuro da Democracia e faz parte do arrazoado de Genro.

Por fim, uma pergunta básica, incontornável: qual é a motivação do governo italiano? Por que tanto empenho em botar as mãos num personagem tão inofensivo, depois de tanto tempo? A resposta, ou parte dela, está na conjuntura doméstica da Itália, marcada pela crise e por uma onda de protestos em que se sobressai um vigoroso ativismo estudantil. Berlusconi e seus aliados reagem à ascensão de uma esquerda não-domesticada sacudindo o espantalho dos "anos de chumbo".

A histeria em torno do caso Battisti, manipulado para criar uma anacrônica associação entre os "radicais" de ontem e de hoje, nada tem de irracional. Ao contrário, dá respaldo a um discurso em que o prefeito fascista de Roma, Gianni Alemanno, acaba de declarar que "o movimento estudantil italiano (seria) dirigido por 300 criminosos da universidade La Sapienza".

Quanto às motivações da imprensa tupiniquim, a explicação é mais simples. A oposição conservadora, diante da patética escassez de argumentos para 2010, quer incluir no seu arsenal de campanha a denúncia do "apoio a um terrorista". Rende votos, supostamente, e ajuda a manter acuados os setores de esquerda no governo Lula e no PT. Tal como espaguete ao sugo e queijo parmesão, a agenda repressiva do governo Berlusconi combina perfeitamente com os interesses do conglomerado PSDB-DEM-mídia-banqueiros-agronegócio. Uma direita ajuda a outra.

Por Igor Fuser, no Operamundi.

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