O Brasil e o Paraguai podem e devem, para além da iniciativa em exame no Parlamento do Mercosul, constituir um fundo comum para a restauração da memória da guerra, de seus sítios históricos e arquivos, em proveito da história dos dois povos. Governos, Parlamentos, universidades, instituições militares integrarão o trabalho comum. Os recursos serão providos dentro das possibilidades de cada país e com a participação de entidades como a empresa binacional de energia Itaipu. Em visitas ao itinerário dos combates pude testemunhar o significado e as marcas do conflito nas gerações paraguaias. É comovedor contemplar as ruínas da velha igreja de Humaitá bombardeada pela esquadra imperial e as águas cristalinas do Arroio Aquidabã, em Cerro Corá, em cujas margens tombaram empunhando a espada o marechal Francisco Solano López e seu filho ainda adolescente, o coronel Juan Francisco. Apesar de registrar que o projeto "não busca fazer sangrar uma antiga ferida", os parlamentares do país irmão falam de "genocídio levado a cabo contra o povo paraguaio", abordagem inaceitável para o propósito da cooperação na reconstrução da memória do conflito. As análises da Guerra do Paraguai e, sobretudo, a avaliação de seus protagonistas variam de acordo com os autores e as conjunturas, resultando em diferentes construções de heróis nacionais erigidos como figuras míticas calcadas no contexto histórico em que foram elaboradas. Examinar o passado com as lentes do presente é uma distorção de historiadores que submetem os fatos à interpretação. A historiografia ainda tem um longo caminho a percorrer e, sobretudo, muitos documentos a apresentar, antes de oferecer conclusões irrefutáveis acerca de aspectos particularmente controversos da guerra, a começar de suas causas e motivações, das estatísticas e suas manipulações, do desempenho dos chefes de Estado e dos generais, assim como das tropas de formação e composição heterogêneas que integraram os exércitos beligerantes. As primeiras interpretações tecidas nos panteões oficiais foram sucedidas por um criticismo exacerbado que o historiador Francisco Doratioto, autor de uma Nova História da Guerra do Paraguai, chamou de "revisionismo infantil". Na poeira dessa revisão se forjou um fomentador externo do conflito, a Inglaterra, que teria financiado a Tríplice Aliança para barrar a modernização do Paraguai - capítulo fantasioso já desmontado por pesquisas. De fato, os ingleses tentaram pôr panos quentes na desavença. Nosso Império escravista e militarista seria antípoda à expansão das forças produtivas no Paraguai. Na verdade, o Segundo Reinado era pacifista e manteve o Exército à míngua, e foi a guerra que conferiu a esta força militar fôlego e consciência para se reorganizar e se consolidar como instituição decisiva, a ponto de ser protagonista das rupturas históricas representadas pela Abolição e pela República. A corrente historiográfica revisionista plantou ainda a tese do "genocídio", do Brasil como combatente desleal que dizimou populações civis indefesas, inclusive crianças. As pesquisas, mesmo as mais recentes, não apresentam conclusões sobre o censo da população paraguaia antes e depois da guerra, mas desautorizam os cálculos imaginosos dos ideólogos do "genocídio". A pesquisadora americana Vera Blinn Reber argumenta que, em lugar de 1,1 milhão, os habitantes do Paraguai eram 320 mil em 1864, e 60 mil morreram durante a guerra - em combate e por causas não militares. Mais uma vez se confirmou o ditado de que na guerra a primeira vítima é a verdade. A tese do genocídio é uma ignomínia contra o Brasil e não faz justiça ao brio do povo e à valentia do soldado paraguaio. Em Itororó os vencedores - os brasileiros - tiveram mais baixas que os vencidos. No assalto a essa pequena ponte o Brasil perdeu 1.800 soldados, dois generais, dezenas de oficiais, e o futuro primeiro presidente da República, Deodoro da Fonseca, foi gravemente ferido, além de presenciar a morte de dois irmãos oficiais. Os combatentes paraguaios merecem a honra eterna de seus compatriotas. Da mesma maneira, os mais de 50 mil brasileiros mortos merecem e aguardam o reconhecimento pleno da Pátria, pois foi por ela e em nome dela que pereceram num dos mais cruéis e sangrentos conflitos da História. Cabe-nos perfilar os heróis de cada lado - não como semideuses, e sim como homens concretos, plenos de historicidade, desempenhando, na hora, no lugar e no posto a que foram conduzidos pelas circunstâncias, um papel distintivo nas suas nacionalidades. Reconstruir a História, e não recontá-la, respeitá-la como patrimônio de dois povos e duas nações irmanadas no objetivo comum da fraternidade e do desenvolvimento equilibrado. Vale lembrar que mesmo em meio ao fogo da batalha os dois povos deram início à reconciliação. Tenho parentes em Alagoas descendentes de avó remota paraguaia que casou com soldado brasileiro, da mesma forma que dona Rafaela López de Bedoya, irmã de ninguém menos que o presidente Solano López, casou com o capitão brasileiro Augusto de Azevedo Pedra antes de a guerra acabar.
* Aldo Rebelo é deputado federal (PCdoB-SP).
Fonte: O Estado de S.Paulo
* Aldo Rebelo é deputado federal (PCdoB-SP).
Fonte: O Estado de S.Paulo
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